Page 25 - Revista EAA - Edição 99
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concepção dos sistemas, pondo potencialmente em perigo os
           utentes da estrada, podendo o condutor ser responsabilizado
           por direção perigosa (art. 34 do Decreto-Lei nº 3.688/41).
           Ética jurídico-penal

           De forma sucinta, o movimento de um veículo em condução
           automatizada é resultado da captação e tratamento de dados
           do veículo e do meio ambiente no qual este circula, sendo cer-
           to que os algoritmos foram desenvolvidos e validados muito
           antes da comercialização do veículo. Um dos grandes ques- FOTO: ARQUIVO PESSOAL
           tionamentos é saber se é possível desenvolver uma estrutura
           artificial de moralidade a ser inserida nos sistemas de condu-
           ção automatizada, a partir das expectativas normativas de uma   Figura 3 - Demonstração Futur en Sein, Paris, junho 2016
           dada população. Os resultados do projeto Moral Machines do
           MIT nos mostram, sob o aspecto jurídico, que a divisão da
           moralidade de senso comum em dois campos opostos (egoís-  responsabilizado criminalmente o fabricante ou seu manda-
           mo e utilitarismo), e depois a formulação de um juízo norma-  tário. Mas a doutrina traz alternativas. Há autores, dentre os
           tivo sobre a viabilidade moral de um dos dois, parece errônea   quais destaco Eric Hilgendorf, que entendem ser razoável
           e superficial. De modo geral, tem-se apenas uma visão parcial   considerar a realização excepcional do risco. Para esse autor,
           das expectativas normativas do grupo focado, bem como de   a probabilidade de violação de bem jurídico de mesma di-
           um tipo de contexto de tomada de decisões.          mensão (vida contra vida) é muito baixa e, em contrapartida,
             A imagem abaixo (figura 3) mostra um cenário que hi-  os benefícios sociais advindos da diminuição dos riscos de
           poteticamente poderia resultar em uma situação de risco de   acidentes e da gravidade destes tornam a inserção de veículos
           vida contra vida, caso um veículo desgovernado e em alta   autônomos no sistema viário um risco permitido, podendo-
           velocidade viesse na direção do veículo autônomo.   -se excluir a imputação de eventual crime. Por outro lado,
             É possível identificar três situações: 1) o veículo segue   pode-se citar o trabalho de Katherine Evans que propõe um
           seu curso e se choca com o outro em sentido contrário, ferin-  sistema de valoração hierárquica para implementação de
           do o motorista; 2) o veículo desvia para a esquerda, atingindo   procedimentos de decisão ética em sistemas autônomos. No
           pedestres; ou 3) o veículo desvia para a direita e o ciclista é   entanto, o grupamento de regras de preferência é um proble-
           atingido. Situação-dilema posta, o que poderia ser conside-  ma que se insere no plano político. A quem compete deter-
           rado, sob o aspecto jurídico? No primeiro cenário, tem-se   minar os parâmetros relevantes?
           que o direito não obriga ninguém ao sacrifício. Assim, o al-
           goritmo não deve necessariamente estabelecer que o veículo  Conclusão

           siga o seu curso ferindo o condutor. No segundo cenário, sob   A qualificação técnico-jurídica de sistemas de condução au-
           a ótica dos utentes da via pública, tem-se que não é possível   tomatizada é determinante para estabelecer as responsabili-
           ponderar vidas humanas em uma compensação quantitativa   dades em caso de acidente. Se situações-dilema forem inter-
           (três pessoas salvas por uma ferida).               pretadas como insolúveis, veículos autônomos não devem ser
             Finalmente, no terceiro cenário, vamos acrescentar um   admitidos em vias públicas ou um condutor humano deverá
           fato novo, consistente no fato do ciclista portar uma torno-  se tornar obrigatório em qualquer nível de automatização.
           zeleira eletrônica de monitoramento criminal (um objeto   Para avançar com responsabilidade sobre o tema, grupos
           comunicante). Neste caso, considerando, de um lado, que o   interdisciplinares envolvendo o poder público, indústria, sis-
           veículo pode ter acesso ao objeto comunicante fixado no ci-  temistas, operadores de transporte público, de energia e de
           clista, e, de outro, a impossibilidade de ponderação de vidas   comunicação, concessionárias e a academia devem ser esta-
           humanas, tem-se que a compensação qualitativa (condenado   belecidos no mais alto grau da administração pública. n
           criminalmente à direita e não condenados à esquerda) não é
           tampouco possível.                                   *Andrea Martinesco é servidora do Ministério Público Federal com
             A pergunta que se põe  é quem  seria responsabilizado   doutorado em direito de novas tecnologias na Universidade Paris-Saclay
           criminalmente em caso de lesão corporal e/ou homicídio se   (França). Como acadêmica, está comprometida com a investigação
           o movimento decorre de resultado matemático? Na Fran-  jurídico-ética dos veículos inteligentes (autônomos e conectados) para
           ça, com a alteração do Código de Trânsito (art. L123-2), é   fomentar sua introdução responsável e inclusiva

           julho/agosto/setembro                                                                            25
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